Na medida em que o “Affair Snowden” se desenrola, cidadãos de todo o mundo, perplexos, tomam conhecimento da quase inimaginável capacidade intrusiva do aparato de inteligência eletrônica dos EUA, cujas dimensões desafiam a imaginação até mesmo do mais criativo ficcionista ou roteirista de Hollywood. Se vivesse hoje, George Orwell consideraria a sua teletela – o principal instrumento de vigilância do “Grande Irmão”, no seu atualíssimo 1984 – como não mais que um mero videojogo infantil. Com a nova rodada de revelações feitas pelo ex-operador de inteligência da Agência de Segurança Nacional (NSA), Edward Snowden, o mundo soube que a agência pode interceptar virtualmente todas as comunicações feitas por meios eletrônicos, em praticamente todos os países, inclusive – e, em alguns casos, principalmente – os aliados nominais dos EUA.
E, para complicar, a despeito das manifestações de indignação vindas de autoridades de alguns deles, as evidências sugerem que os governos destes países não apenas tinham plena ciência do esquema, como os seus próprios serviços de inteligência têm vínculos com ele.
As revelações foram feitas, no último fim-de-semana, pelo jornal inglês The Guardian e a revista alemã Der Spiegel, baseadas em documentação fornecida por Snowden, que ainda está retido na área de trânsito internacional do Aeroporto de Sheremetyevo, em Moscou. A revista sintetiza:
«Os documentos da NSA de Snowden contêm mais que um ou dois escândalos. Eles são uma espécie de retrato digital do trabalho da mais poderosa agência de inteligência do mundo, durante um período de cerca de uma década… Os documentos provam que a Alemanha desempenhou um papel central na rede de vigilância global da NSA – e, também, como os alemães se tornaram alvos dos ataques estadunidenses. Todos os meses, o serviço de inteligência dos EUA recolhe dados de cerca de meio bilhão de conexões de comunicações da Alemanha.»
«Ninguém está a salvo desta espionagem em massa – ou, pelo menos, quase ninguém. Apenas um seleto grupo de nações está excluído – países que a NSA define como amigos próximos ou do “segundo grupo” [2nd party, no original n.e.], como indica um documento interno. Estão incluídos o Reino Unido, Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Um documento classificado como “top secret” afirma que “a NSA não visa os seus parceiros do segundo grupo, nem requer que eles façam alguma coisa que seja inerentemente ilegal para a NSA.»
«Entretanto, para todos os outros países, inclusive o grupo de cerca de 30 nações consideradas parceiras do terceiro grupo [3rd party, no original - n.e.], essa proteção não se aplica. «Nós podemos visar os sinais da maioria dos parceiros estrangeiros de terceiro grupo e, com frequência, o fazemos”, jacta-se a NSA em sua apresentação interna.»
Os parceiros do “segundo grupo” são os integrantes originais do chamado “Acordo UKUSA”, assinado em 1946, entre os cinco países de língua inglesa, para estabelecer uma rede de vigilância de comunicações eletrônicas, já no contexto da Guerra Fria. Na década de 1990, o arranjo ficou conhecido como “Sistema Echelon” (Escalão, em inglês) e foi objeto de uma investigação oficial do Parlamento Europeu. Originalmente, o esquema era voltado para a interceptação de mensagns radiofônicas, telegráficas e telefônicas. Porém, desde então, com o advento da telefonia celular e da Internet, a amplitude desse aparato de espionagem aumentou em algumas ordens de grandeza.
Para os cidadãos europeus, especialmente, os alemães, foi uma desagradável surpresa saber que a NSA espiona os seus governos e a infraestrutura da União Europeia, tanto nos EUA como na própria Europa. Para os governos envolvidos, nada além de “business as usual”, mas, como observa a Spiegel:
«Porém, o aspecto novo das revelações não é que os países estejam tentando espionar uns aos outros, grampear ministros e efetuar espionagem econômica. O que é mais importante sobre os documentos é que eles revelam a possibilidade de vigilância absoluta das pessoas de um país e de cidadãos estrangeiros, sem qualquer tipo de controles ou supervisão efetivos. Entre as agências de inteligência do mundo ocidental, parece haver uma divisão de tarefas e, às vezes, uma cooperação extensiva. E parece que o princípio de que agências de inteligência estrangeiras não monitoram os cidadãos dos seus próprios países, ou que só o fazem com base em decisões judiciais individuais, está obsoleto neste mundo de comunicações e vigilância globalizadas… Os documentos mostram que, em tal situação, os serviços fizeram o que não é apenas óbvio, mas também está autorizado pelas leis alemãs: eles intercambiaram informações; e trabalharam amplamente juntos. Isto se aplica aos britânicos e estadunidenses, mas, também, ao BND [Serviço Federal de Informações alemão - n.e.], que ajuda a NSA em sua vigilância da Internet.»
Em sua matéria a respeito (já removida do sítio do jornal), o Guardian reproduziu um mapa múndi colorido que constava em um dos documentos da NSA, com os países pintados de acordo com o nível da espionagem da agência, variando entre verde escuro e vermelho, as tonalidades mais esverdeadas para os menos espionados e o vermelho para os mais espionados. Na primeira categoria, estavam os parceiros do UKUSA e a maior parte da América Latina; no extremo oposto, o Irã e o Paquistão. Os alemães ficaram surpresos ao descobrir que seu país está na mesma categoria que a China – e os próprios EUA, indicando a extensão da espionagem interna promovida pela agência (atribuição que, oficialmente, caberia apenas ao FBI). Surpreendentemente (ou nem tanto), o Brasil recebeu uma coloração verde clara igual à da Federação Russa – o que deve servir como uma séria advertência para as autoridades nacionais.
Mas os alemães parecem ser, mesmo, os mais indignados com as revelações. Embora a chanceler Angela Merkel, assim como alguns de seus colegas europeus, tenha feito protestos públicos contra a bisbilhotice estadunidense, seus opositores políticos internos e parte da mídia e da própria sociedade alemã já começam a questionar que ela não tivesse conhecimento prévio do esquema, do qual o serviço de inteligência alemão também é parte integrante. Em outros países, como a França, também já há sinais de cobrança vindos de alguns setores da sociedade. No âmbito da UE, o escândalo poderá refletir-se nas negociações do acordo de livre comércio com os EUA, cujo início está previsto para agosto próximo. Mas não seria surpresa se, em algumas semanas, começarem a ocorrer manifestações populares motivadas pela repulsa à vasta máquina de espionagem capitaneada pela NSA, absolutamente desproporcional frente a qualquer suposta ameaça à segurança estadunidense e configurando um sistema cujo interesse maior é a sua própria autopreservação – e uma ameaça real aos cidadãos de todo o mundo.
Créditos ➞ Este artigo foi apresentado no Boletim Eletrônico MSIa INFORMA, do MSIa – Movimento de Solidariedade Íbero-americana, Vol. IV, No 51, de 05 de julho de 2013.
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