Talvez, nenhuma análise sintetize melhor algumas das motivações dos protestos que eclodiram na Turquia, do que os cartazes exibidos por vários manifestantes que passaram a ocupar a Praça Taksim, no centro de Istambul, desde o dia 31 de maio. Em meio aos protestos contra o alegado autoritarismo do premier Recep Tayyip Erdogan e a truculência da polícia na repressão às manifestações, os cartazes diziam apenas: «Nós somos filhos de Atatürk».
A referência ao fundador do Estado nacional turco sinaliza uma oposição às intenções de Erdogan de suplantar, pelo menos em parte, o secularismo da república de Atatürk, impondo conceitos de legislação islâmica.
De fato, o que começou como um pacífico protesto contra a anunciada demolição do Centro Cultural Atatürk e o corte de algumas dúzias de árvores na única área verde restante no centro de Istambul, para dar lugar a um shopping e ao simulacro de um antigo quartel otomano, se converteu rapidamente em grandes e inesperadas manifestações, que se espalharam pelo país.
Acima das motivações mais diretas de ambientalistas, militantes de direitos humanos, pró-abortistas e de uma variedade de outras causas, têm pairado as preocupações de cidadãos conscientes e ciosos do legado do fundador da República da Turquia.
Em especial, dois motivos têm sido destacados para justificar os protestos: as medidas islâmicas introduzidas por Erdogan e a sua desastrosa ingerência no conflito na Síria, de escasso apoio popular, mesmo entre os seus seguidores. Como afirmou, em sua coluna no jornal O Globo de 6 de junho, o sociólogo Demétrio Magnoli (“De Tahir a Taksim”):
(…) «Na raiz da revolta encontra-se a ampla oposição pública ao envolvimento da Turquia na guerra civil síria – ou seja, ao renascimento neo-otomano acalentado pelo governo. Mas isso não é tudo nem o principal. Atatürk aboliu o califado, separou a escola da mesquita, conferiu às mulheres direitos iguais aos dos homens. Sob Erdogan, no alto funcionarismo público, mensagens não muito ocultas instruem as mulheres a se vestirem em padrões tradicionais, as escolas reintroduzem cursos corânicos, adverte-se contra o beijo em lugares públicos e uma nova lei restringe o comércio de bebidas alcoólicas.
«“Nos exames, surgem diversos itens ideológicos adaptados aos apoiadores do governo” — disse um estudante secundarista envolvido nos protestos de Taksim. A Praça Taksim não é a Tahir original, mas parece-se com a segunda Tahir, onde as correntes seculares egípcias desafiam o tradicionalismo islâmico do governo da Irmandade Muçulmana… A revolta que se estende pela Turquia não tem a marca de um partido, abrangendo jovens e velhos, homens e mulheres, turcos e curdos, esquerdistas e liberais. Não é a nação inteira que se levanta, mas é quase toda a sua face resolutamente secular.» (…)
Os méritos de Erdogan são inegáveis. Em seu terceiro mandato pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco), de raízes islâmicas, promoveu uma vigorosa agenda de desenvolvimento, assinalada por um crescimento anual médio do PIB da ordem de 7%, com vultosos investimentos em infraestrutura e modernização econômica.
Além disto, implementou um ambicioso programa educacional, que quadruplicou o orçamento do Ministério da Educação, quase dobrou o número de universidades e, com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), estabeleceu um bem sucedido programa para ampliar a educação feminina. E, ao mesmo tempo, tomou importantes medidas para solucionar o explosivo conflito com a minoria curda (embora não tenha feito o mesmo com o não menos explosivo imbróglio do genocídio armênio durante a I Guerra Mundial).
Igualmente, e não apenas pelo sucesso econômico, durante o seu governo, a Turquia adquiriu uma inusitada estatura internacional, exemplificada pelo Acordo de Teerã, intermediado com o Brasil, junto ao Irã, em maio de 2010, um importante esforço para solucionar o contencioso sobre o programa nuclear iraniano, imediatamente sabotado pelo governo dos EUA e seus aliados europeus.
Da mesma forma, seu brilhante chanceler Ahmet Davutoglu instituiu uma orientação de política externa sintetizada pela expressão “zero problema com os vizinhos”. Desafortunadamente, o próprio Erdogan começou a abandoná-la durante a intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra o regime do líder líbio Muamar Kadafi, em 2011 e, logo em seguida, no conflito sírio, no qual tem cedido o território turco para as operações das forças insurgentes contra o regime de Bashar al-Assad.
Atatürk
Ao adotar a agenda neocolonial de seus parceiros da Aliança Atlântica, Erdogan se coloca, outra vez, em contraste com Mustafa Kemal Atatürk, que fundou a república turca sobre os escombros do extinto Império Otomano e derrotando as pretensões coloniais do Reino Unido e da França, vencedoras da I Guerra Mundial, na qual a Turquia otomana lutou ao lado da derrotada Alemanha.
Seguramente, tal ironia não escapa a um bom número dos manifestantes que desafiam a intransigência por ele demonstrada até agora na resolução do imbróglio, para os quais seu país se apresentaria muito melhor no cenário internacional se colocando decididamente no caminho da descolonização, sob todas as suas formas.
Créditos ➞ Este artigo foi apresentado no Boletim Eletrônico MSIa INFORMA, do MSIa – Movimento de Solidariedade Íbero-americana, Vol. IV, No 48, de 14 de junho de 2013.
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