Um artigo do jornalista e apresentador estrela da rede CNN, Fareed Zakaria, sugere que certos setores do Establishment anglo-americano estão mobilizados para tirar proveito da situação de caos criada no Iraque, com a investida do grupo terrorista sunita Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL ou ISIS, na sigla em inglês). O texto, originalmente publicado em sua coluna regular no Washington Post e reproduzido em vários jornais do mundo, inclusive O Estado de S. Paulo (23/06/2014), afirma sem meias palavras que os EUA deveriam reconhecer uma nova realidade no Oriente Médio – o mundo dos enclaves.
Zakaria, que também é vinculado ao ultra-seleto Conselho de Relações Exteriores (CFR) de Nova York, sempre atua como porta-voz de certas orientações políticas maquinadas dentro do Establishment oligárquico, de modo que os seus comentários devem receber a devida atenção.
O texto de Zakaria representa, inclusive, uma guinada nos seus próprios comentários na coluna anterior (publicada no “Estadão” de 16 de junho), intitulada “Quem é o culpado pela perda do Iraque?”. Nela, se mostra mais preocupado em responsabilizar o presidente George W. Bush, seu sucessor, Barack Obama, e o premier iraquiano Nuri al-Maliki, pela virtual derrocada do Estado iraquiano. No artigo seguinte, a preocupação é outra:
“Quem observou o Oriente Médio 15 anos atrás terá visto uma série de regimes notavelmente semelhantes – da Líbia e da Tunísia, a oeste, até Síria e Iraque, no leste. Todos eram ditaduras. Todos eram seculares, no sentido de que não derivavam sua legitimidade de uma identidade religiosa. Historicamente, todos haviam sido sustentados por potências externas – primeiro por britânicos e franceses, depois pelas superpotências. (…) E eles tinham fronteiras seguras.”
“Hoje, por toda a região, da Líbia à Síria, essa estrutura de autoridade implodiu e os povos estão buscando suas antigas identidades. Grupos sectários, como sunitas, xiitas, curdos – com frequência de natureza islamista – preencheram o vazio de poder, espalhando-se sem se importar com fronteiras e disseminando a violência. No Iraque e outras partes nenhuma quantidade de poder militar americano conseguirá reconstruir o vaso quebrado.”
Especificamente, sobre o Iraque, depois de repetir as justificadas críticas ao premier xiita al-Maliki, por seu sectarismo excludente das demais etnias que constituem a população iraquiana, Zakaria diz duvidar, tanto da possibilidade do estabelecimento de um governo exclusivamente xiita em Bagdá, como da formação de uma ampla coalizão governista – rechaçada pelo premier, que considera “traição” qualquer sugestão a respeito. Por conseguinte, afirma:
(…) “Washington precisa de um Plano B. O Plano B seria uma estratégia de enclave. Os EUA deveriam reconhecer que o Iraque está se tornando um país de enclaves e trabalhar para garantir que essas regiões permaneçam tão estáveis, livres de terroristas e abertas quanto possível. O enclave curdo – agora fortalecido por ter capturado a cidade vital de Kirkuk – já é uma história de sucesso. A região xiita do sul pode ser estável. Será possível trabalhar com países como Arábia Saudita e Jordânia para influenciar grupos sunitas no meio do país, expurgando terroristas e dando poder aos sunitas moderados.”
“Uma estratégia comparável na Síria seria permitir que grupos como curdos e sunitas protejam suas próprias áreas da brutalidade de Bashar Assad. Mas reconheceria que eles não conseguirão derrubar o regime. Haverá lugares onde o Estado Islâmico do Iraque e do Levante e grupos similares ganharão força. Nesses locais, Washington teria de usar drones, contrainteligência e ataques esporádicos de forças especiais – como no Afeganistão, no Paquistão, no Iêmen e na Somália. O mundo de enclaves já existe. Washington simplesmente precisa perceber quais partes do Iraque já estão nele.”
A observação de Zakaria sobre a Síria deixa de lado apenas o detalhe relevante de que a principal preocupação da grande maioria dos sunitas (74% da população) e curdos (cerca de 10% da população) não é o regime de Assad, que pertence à minoria alauíta (xiita), mas a ferocidade e o sectarismo dos grupos islamistas – como o próprio ISIL -, que tomaram conta da insurgência armada contra o governo.
Seja como for, parece evidente que os elementos do Establishment que pensam como Zakaria estão se ajustando rapidamente à perspectiva de um cenário pós-Estados nacionais para o Oriente Médio – e, quem sabe, vislumbrando estendê-lo a outras regiões do planeta. Vale recordar que, ao final da Guerra do Golfo de 1990-91, alguns estrategistas oligárquicos já antecipavam o “Curdistão” como um exemplo de um novo mundo pós-westfaliano, em que as soberanias nacionais deveriam ser “restringidas”, por razões étnicas ou pretextos como a proteção do meio ambiente, violações de direitos humanos e uma pletora de outros argumentos ad hoc, para justificar intervenções militares de coalizões internacionais encabeçadas pelas potências da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que muitos já viam como uma “gendarmeria global”.
O Brasil tem um motivo especial para prestar atenção em tais desdobramentos, já que a sugestão de um “enclave curdo” no norte do Iraque foi levantada, naquela época, por vários proponentes da agenda das “soberanias restritas” para as questões ambientais, como precedente para ações semelhantes na Região Amazônica, entre eles, o casal François e Danielle Mitterrand, então, presidente e primeira-dama da França. A campanha internacional para a delimitação da reserva indígena ianomâmi, que assinalou um dos primeiros grandes triunfos da agenda ambientalista-indigenista no Brasil, no final de 1991, foi bastante influenciada por tal impulso intervencionista.
Zakaria encerra o artigo com uma recomendação direta: “Os EUA não podem deter essa tendência, mas podem tentar limitar suas repercussões, fortalecer países e zonas estáveis, apoiar os que acreditam em reconciliação e proteger a si mesmos e seus amigos.”
Em outras palavras: se não podemos deter a avalanche,
preparemo-nos para tirar proveito da terra arrasada que ficará em seu caminho.
Créditos ➞ Este artigo foi apresentado no Boletim Eletrônico MSIa INFORMA, do MSIa – Movimento de Solidariedade Íbero-americana, Vol. V, No 45, de 30 de junho de 2014.
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