Pode-se gostar ou não de Vladimir Putin, mas é inquestionável que, como estadista, o presidente da Federação Russa não tem rivais entre os atuais titulares dos governos das principais potências mundiais. Tal constatação pode ser aferida, na semana passada, durante a sua presença na França, para participar da celebração dos 70 anos do desembarque na Normandia, o célebre Dia-D, que consolidou o retorno das forças Aliadas ao continente europeu, na II Guerra Mundial, abrindo concretamente a chamada “Segunda Frente”, tão reclamada pelo líder soviético Josef Stálin, cujas forças vinham carregando o fardo mais pesado, na luta contra a Alemanha nazista.
O convite para a cerimônia – o primeiro feito a um presidente russo – deixou o anfitrião François Hollande em uma saia justa, em especial, quanto à presença de Putin junto a alguns dos seus mais ativos detratores recentes, como o presidente Barack Obama e o premier britânico David Cameron. A situação levou a diplomacia francesa ao inusitado de promover dois jantares para Hollande, na mesma noite, um com Obama e outro com Putin. Ao final, no almoço oferecido por Hollande aos chefes de Estado e governo presentes, na sexta-feira 6, Obama e Putin acabaram se reunindo e conversando durante cerca de 15 minutos, em uma conversa considerada como “informal” pelo conselheiro da Casa Branca, Ben Rhodes.
O conteúdo da conversa só foi conhecido pela versão de Rhodes, segundo a qual Obama teria enfatizado que a responsabilidade maior para um alívio das tensões na crise da Ucrânia estaria com Putin. “O presidente Obama deixou claro que a descalada dependia do reconhecimento pela Rússia do presidente eleito Petro Proroshenko como líder legítimo da Ucrânia e do fim da ajuda russa aos separatistas no leste da Ucrânia e os movimentos de militares e armas através da fronteira”, disse ele (G1, 6/06/2014).
Não se sabe o que Putin disse a Obama, mas, certamente, foram mais produtivas as suas conversas com o próprio Hollande e a chanceler alemã Angela Merkel. Do anfitrião, ouviu garantias de que Paris não pretendia recuar na entrega dos dois navios de assalto anfíbio classe Mistral encomendados pela Rússia, um dos quais deverá ser entregue à Marinha Russa em outubro próximo e o outro, em 2016. Nas últimas semanas, o governo dos EUA e o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) vinham pressionando para que a França cancelasse o contrato, como retaliação às ações russas na Ucrânia, sugerindo que os navios poderiam ser arrendados pela própria OTAN. De Merkel (com quem conversa diretamente, sem intérprete), Putin foi informado do apoio de Berlim à decisão francesa.
Merkel foi, também, a testemunha da conversa de Putin com Poroshenko, na qual ambos discutiram as condições para um cessar-fogo, no conflito entre as forças do governo de Kiev e as províncias do Sudeste da Ucrânia, que declararam a sua independência. Na ocasião, houve uma concordância de que a solução para o impasse terá que ser por métodos “políticos e pacíficos”.
Embora, até o momento, a solução não esteja à vista, o empenho de Moscou na sua busca ficou evidenciado na reunião entre o chanceler Sergei Lavrov com seus colegas polonês, Radoslaw Sikorski, e alemão, Frank-Walter Steinmeier – dois ativos críticos de Putin -, em São Petersburgo, no início desta semana. A escolha dos interlocutores reflete não apenas a condição alemã como a principal potência europeia, como o fato de que a Polônia contribuiu substancialmente para o treinamento de milicianos e paramilitares ucranianos, para a campanha que resultou na derrubada do presidente Viktor Yanukovich. No evento, Lavrov enfatizou que a cessação das ações militares de Kiev é uma condição fundamental para quaisquer negociações.
Por outro lado, talvez, o melhor palco para Putin tenha sido a entrevista concedida por ele à Rádio Europa 1 e à rede de televisão TF1, ambas francesas, em 4 de junho, véspera de sua viagem à França. Mesmo falando através de um intérprete, que também não amenizou as perguntas ou as respostas, os jornalistas Jean-Pierre Elkabbach e Gilles Bouleau protagonizaram uma das mais agressivas séries de perguntas jamais endereçadas a um chefe de Estado, enquanto proporcionavam ao entrevistado a oportunidade de apresentar as suas posições em uma linguagem direta e pouco usual em homens públicos. Posteriormente, Elkabbach, um dos mais renomados profissionais do país, sintetizou a sua própria impressão sobre Putin, deixando nos espectadores uma impressão de simpatia pelo entrevistado, mesmo dizendo que é preciso “ficar alerta” quando se está diante dele: “Ele tem um tipo de carisma frio. Uma energia sem exuberância, a firmeza e a rigidez brutal de um tímido. Não se parece como a sua caricatura.”
Elkabbach e Bouleau iniciaram, mencionando a oportunidade da presença de Putin nas celebrações do Dia-D, com uma formulação que, por si, denota a imagem distorcida que muitos ocidentais ainda têm sobre o papel da extinta União Soviética na derrota do nazifascismo: “O que o senhor, como cidadão russo, pensa sobre ser convidado para esta cerimônia excepcional?”
A resposta de Putin foi ao ponto:
Este será um importante evento para a Europa e o resto do mundo. Pagaremos tributo àqueles que evitaram que o nazismo escravizasse a Europa, e eu acredito que a presença da Rússia é um evento significativo. O fato é que a Rússia e os países da coalizão anti-Hitler, inclusive a França, foram aliados naquela luta pela liberdade e meu país teve um papel vital, talvez, decisivo, na derrota do nazismo. Mas nunca esqueceremos os combatentes da Resistência francesa e os soldados franceses que lutaram ao nosso lado, na frente soviético-germânica, também chamada Frente Oriental. Eu acredito que isto deveria não apenas recordar-nos da nossa história, mas também ajudar a promover as nossas relações, hoje e no futuro.
Em outra pergunta, sobre os objetivos russos, a dupla gaulesa questionou: “A estratégia da Rússia é um caminho de diálogo ou de expansão e conquista?”.
A resposta foi um maldisfarçado recado, em especial, a Washington: “Bem, uma política de expansionismo e conquista não tem futuro no mundo moderno. Nós estamos confiantes em que a Rússia pode e deve ser uma parceira com os seus aliados tradicionais, no sentido mais amplo, hoje e no futuro. Isto é o que queremos e para o que continuaremos trabalhando. Não vemos outra maneira de desenvolver as relações com os nossos vizinhos e todos os outros países.”
Mantendo a pressão, os franceses insistem: “O senhor quer defender a nação russa ou se tornar o símbolo do nacionalismo russo e do Império Russo? Nós recordamos o que o senhor disse sobre a dissolução da União Soviética. O senhor disse que foi o pior desastre geopolítico do século XX. O senhor também disse que aqueles que não lamentam o colapso da URSS não têm coração e aqueles que querem restaurá-la não têm miolos. O senhor tem miolos. O que propõe: nacionalismo russo ou a restauração do Império Russo com as suas fronteiras anteriores?”
Putin - Nós não promoveremos o nacionalismo russo e não pretendemos reviver o Império Russo. O que eu quis dizer quando falei que o colapso da URSS foi um dos maiores desastres humanitários – acima de tudo, humanitários – do século XX? Eu quis dizer que todos os cidadãos da URSS viviam em um Estado unificado, independentemente da sua etnicidade, e após o seu colapso, 25 milhões de russos, subitamente, se tornaram cidadãos estrangeiros. Foi um enorme desastre humanitário – não político ou ideológico, mas uma comoção puramente humanitária. Famílias foram divididas, pessoas perderam seus empregos e meios de subsistência e não tinham meios de se comunicar entre si, normalmente. Este foi o problema.
Os entrevistadores são persistentes: “E sobre o futuro? O senhor quer restaurar o império, nas suas fronteiras anteriores, ou quer continuar a desenvolver o seu país dentro das suas próprias fronteiras?”.
Putin – É claro que nós queremos desenvolver o nosso país dentro das nossas próprias fronteiras. Mas – e isto é muito importante -, como outros países em outras partes do mundo, queremos usar políticas modernas para melhorar as nossas vantagens comparativas, inclusive a integração econômica. Isto é o que estamos fazendo no espaço pós-soviético, com a União Aduaneira e, também, com a União Eurasiática.
Adiante, uma das passagens mais tensas da entrevista, quando os jornalistas afirmaram que os EUA anunciaram ter provas sobre a intervenção russa no conflito na Ucrânia, com tropas e armamentos. A resposta foi fulminante:
Provas? Por que não as mostram? O mundo inteiro se recorda do secretário de Estado dos EUA [Colin Powell] demonstrando as evidências das armas de destruição em massa do Iraque, agitando um tubo de ensaio com sabão em pó, no Conselho de Segurança da ONU. Eventualmente, as tropas estadunidenses invadiram o Iraque, Saddam Hussein foi enforcado e, depois, se viu que nunca existiram armas de destruição em massa no Iraque. Vocês sabem, uma coisa é falar e outra é, realmente, mostrar as evidências. Eu direi novamente: não há tropas russas…
Um deles interrompe: “O senhor está dizendo que os EUA estão mentindo?”.
Putin – Sim, estou. Não há forças armadas ou ‘instrutores’ russos no Sudeste da Ucrânia. E nunca houve.
Em outra passagem, os jornalistas mencionam o que muitos analistas ocidentais rotulam como um novo impulso armamentista russo: “Mas o senhor tem tomado algumas decisões sobre o seu orçamento de defesa. O senhor, como presidente, está tomando decisões especiais sobre segurança e defesa, agora, por que o ambiente geral está mais arriscado?”
Putin – Sobre o orçamento de defesa, eu diria, como referência, porque somente os analistas sabem disto, que o orçamento de defesa dos EUA… é maior que os orçamentos militares combinados de todos os países do mundo – todos eles. Então, quem é que está perseguindo uma política agressiva?
Para concluir esta amostragem da entrevista, reproduzimos alguns dos seus trechos finais, em que os jornalistas questionam a democracia russa:
P - Eu gostaria de lhe perguntar sobre o seu país, a Rússia. Como o senhor descreveria o seu presente regime político? Alguns o descrevem como uma democracia, enquanto outros dizem que a Rússia é tão grande que precisa de uma mão de ferro. Como Vladimir Putin define o regime de Putin?
Putin – O presente regime não está vinculado a qualquer pessoa em particular, incluindo o presidente em mandato. Nós temos instituições de Estado democráticas, embora elas reflitam as necessidades da Rússia. O que são elas? A esmagadora maioria dos cidadãos russos tende a se basear nas suas tradições, na sua história e, se se pode dizer assim, nos seus valores tradicionais. Eu vejo isto como a base e um fator de estabilidade do Estado russo, mas nada disto está associado ao presidente como indivíduo. Ademais, deve ser lembrado que nós apenas recentemente começamos a introduzir instituições democráticas padrões. Elas ainda estão em processo de evolução.
P – Pode uma pessoa se opor às autoridades na Rússia, sem medo de perder os seus vínculos e a sua reputação, sem ser punida?
Putin – Nós temos muitos partidos de oposição e, recentemente, liberalizamos os procedimentos para o registro de partidos políticos. Temos dúzias de partidos que participam das eleições municipais e regionais.
P – Mas é possível ser um opositor pessoal de Vladimir Putin sem se expor a riscos?
Putin – Se vocês ouvirem algumas das nossas estações de rádio e assistirem a alguns programas de televisão, posso garantir que é pouco provável que encontrem qualquer coisa similar a este tipo de oposição, na França.
Aos leitores interessados, recomendamos enfaticamente a leitura da entrevista integral, que pode ser encontrada, em inglês, no sítio do Kremlin.
É, precisamente, por agir de acordo com princípios e interesses que respondem majoritariamente à sociedade russa, que Putin vem despertando uma simpatia crescente, principalmente, fora da Rússia. Uma evidência disto foi a não menos emblemática entrevista da líder da Frente Nacional (FN), Marine Le Pen, à revista alemã Der Spiegel (3/06/2014), na qual a polêmica líder política francesa enfrentou uma bateria de perguntas com a mesma carga de agressividade que a de Putin aos jornalistas franceses. A passagem relevante foi a seguinte:
Spiegel – Por que a senhora está apoiando o presidente russo Vladimir Putin, em sua posição contra a Europa, na crise na Ucrânia?
Le Pen - Eu não apoio Putin contra a Europa. Isto é uma caricatura. Eu apoio uma Ucrânia federalista. A União Europeia atirou gasolina no fogo, propondo uma parceria econômica a um país conhecido por olhar metade para o Leste e metade para o Oeste.
Spiegel – A senhora admira Putin?
Le Pen – Eu tenho uma certa admiração por Vladimir Putin, porque ele não permite que outros países lhe forcem as decisões. Eu acho que ele enfoca, primeiro e acima de tudo, o que é bom para a Rússia e para os russos. Como tais, eu tenho o mesmo respeito por Putin, como tenho pela senhora [Angela] Merkel.
Créditos ➞ Este artigo foi apresentado no Boletim Eletrônico MSIa INFORMA, do MSIa – Movimento de Solidariedade Íbero-americana, Vol. IV, No 43, de 13 de junho de 2014.
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